escrito há mais de 100 anos, o texto de guerra junqueiro não podia estar mais actual.
Um povo imbecilizado e resignado, humilde e
macambúzio, fatalista e sonâmbulo, burro de carga, besta de nora, aguentando
pauladas, sacos de vergonhas, feixes de misérias, sem uma rebelião, um mostrar
de dentes, a energia dum coice, pois que nem já com as orelhas é capaz de
sacudir as moscas; um povo em catalepsia ambulante, não se lembrando nem donde
vem, nem onde está, nem para onde vai; um povo, enfim, que eu adoro, porque
sofre e é bom, e guarda ainda na noite da sua inconsciência como que um lampejo
misterioso da alma nacional, reflexo de astro em silêncio escuro de lagoa
morta.
Uma burguesia, cívica e politicamente corrupta até à
medula, não descriminando já o bem do mal, sem palavras, sem vergonha, sem carácter,
havendo homens que, honrados na vida íntima, descambam na vida pública em
pantomineiros e sevandijas, capazes de toda a veniaga e toda a infâmia, da
mentira a falsificação, da violência ao roubo, donde provem que na política
portuguesa sucedam, entre a indiferença geral, escândalos monstruosos,
absolutamente inverosímeis no Limoeiro. Um poder legislativo, esfregão de
cozinha do executivo; este criado de quarto do moderador; e este, finalmente,
tornado absoluto pela abdicação unânime do País.
A justiça ao arbítrio da Política, torcendo-lhe a vara ao
ponto de fazer dela saca-rolhas.
Dois partidos sem ideias, sem planos, sem convicções,
incapazes, vivendo ambos do mesmo utilitarismo céptico e pervertido, análogos
nas palavras, idênticos nos actos, iguais um ao outro como duas metades do
mesmo zero, e não se malgando e fundindo, apesar disso, pela razão que alguém
deu no parlamento, de não caberem todos duma vez na mesma sala de jantar.
Guerra Junqueiro, in 'Pátria (1896)'